Querido diário.

Hoje consegui, finalmente, ir à escola. O meu pai não precisava de mim e deixou-me ir. Gosto tanto de ir à escola, e hoje aprendi coisas bonitas na aula de português. Fui eu que li o texto de hoje e não me enganei nenhuma vez. Estou contente por mim. A professora diz que eu leio e escrevo bem, que até sou bom aluno, mas se continuar a faltar às aulas, ela não me vai poder passar. Já atrasei dois anos por causa disso e vou a caminho do terceiro. Às vezes só penso em desistir. Se passar de ano tenho de ir para outra escola, mais longe, mas o meu pai nunca me deixaria ir. Precisa de mim no trabalho, e eu tenho de o ajudar.

No recreio estive sentado a ver os outros miúdos a brincarem uns com os outros e a comerem o lanche. Não levei nada. Não tinha nada para levar. A Joana quis oferecer-me o seu, mas eu, com vergonha, disse que não tinha fome. Tinha vontade de brincar com eles, mas aquelas brincadeiras já não eram para mim e, como faltei muito às aulas, não os conhecia muito bem. Senti-me muito mais velho do que eles. Acho que a vida me obrigou a isso, também. Por vezes sinto inveja deles, de ter uma família como a deles. Mas não é por mal. No final das aulas os pais estavam todos à entrada para virem buscar os outros miúdos. Eu não tinha ninguém à minha espera, mas sabia o caminho para casa.

À vinda para casa passei no cemitério e aproveitei para visitar a minha mãe.

Já passaram muitos anos. Era muito novo quando foi embora, e já quase não me lembro dela, mas sinto-me bem ali. Falo para ela e imagino as suas respostas. Às vezes conto-lhe o que se passa na escola, como me sinto e, no final, rezo sempre aquela pequena oração que me ensinou quando eu era muito pequeno. Essa oração que rezávamos todas as noites, antes de ir dormir, é das poucas coisas que ainda me lembro dela.

Tenho pena de não me lembrar de muito mais… ela que me perdoe.

Às vezes demoro muito tempo a falar com ela e hoje foi uma dessas vezes. Quando percebi que me tinha demorado vim a correr para casa, mas já foi tarde demais. Quando cheguei e vi a garrafa vazia em cima da mesa, percebi porque é que o meu pai me deixou ir à escola: não ia trabalhar. Vi-o no sofá, tinha já o cinto pronto na mão. Perguntou-me para onde é que tinha ido. Já não se lembrava, mas não adiantou responder-lhe. Agarrou-me na mão e tentei proteger-me com a outra, mas ainda doeu mais.

Custa-me um bocado escrever, agora, mas isto passará. Um dia, quando for maior, e tiver mais força, ele já não me fará mal e eu vou poder ajudá-lo melhor. Sei que este não é o meu pai e não vou descansar enquanto não o encontrar dentro daquele corpo. Por mais que me doa, eu continuo a ser tudo o que ele tem, e ele tudo o que eu tenho.

Um dia tudo ficará bem. Eu acredito nele e não o vou abandonar.

A minha professora diz-me que sou um pequeno adulto que cuida de um adulto pequeno. Sim, talvez seja mais crescido do que pareço, mas aceito isso. Não tive o que os outros rapazes da minha idade tiveram. Nunca tive ninguém que me preparasse o pequeno-almoço ou que me levasse à escola. Nunca tive ninguém que me contasse uma história ou que me cobrisse de noite. Mas sou feliz. Sou feliz porque sonho que um dia tudo será diferente, e isso não há chicotada que me roube.

Sim, hoje não voltei a comer quase nada, e sim, hoje o meu pai voltou a bater-me. Isso deixou-me triste, mas estou mais triste por hoje ter completado doze anos e ninguém se ter lembrado de mim…